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Belo Horizonte, MG, Brazil
Sou uma pessoa simples, que fez da música a razão de viver.

Meu Livro - LAURA



Prefácio: A SAGA DE UMA ITALIANINHA

Deus concedeu-me a graça de encontrar pelo meu caminho a talentosa cantora Soninha Moreira e seu inseparável companheiro de viagem nesta vida Nadilson Macedo que é guitarrista e arranjador de mão cheia quando eu ainda engatinhava nos primeiros versos fazendo letra de música e acalentava o sonho de ver algum dia ao menos uma delas gravada a girar num velho disco de vinil. Naquele tempo nem se ouvia falar em CD ou nos diversos tipos de mídia que existem hoje para disseminação de versos e acordes embalados em canções -, ou ainda, nas infinitas possibilidades que vieram à tona com revolução da Internet.

E lá se foram quase trinta anos.... E nem sei “quantas luas apaguei para ver o sol trazer de volta minha lucidez” sem acordar daquele sonho no ano de 1989 quando ela com toda sua generosidade decidiu registrar nada menos que quatro das letras que fiz em parceria com diferentes compositores no seu primeiro LP.

Agora em 2014 a reencontrei portadora da boa nova de que escreveu um livro contando não apenas a história de sua vida, mas também de sua origem italiana repleta de personagens dos quais logo ficamos íntimos pela espontaneidade com a qual essa mineira de Itabirito, que ganha a vida encantando as pessoas com sua voz nas noites de Belo Horizonte e arredores consegue ir puxando os muitos fios de sua memória viva para nos envolver nos detalhes narrados usando também para isso fotos e documentos de .época que giram em torno da verdadeira saga de Laura, sua mãe, que foi rejeitada ao nascer sendo enviada para uma instituição religiosa e que mais tarde ficou conhecida em Itabirito – MG como “a moça que veio da Itália para o Brasil e fugiu do convento”. E ai de quem falasse mal dessa fujona perto de Sá Notata, respeitada parteira na cidade e mãe adotiva de Lauda, criança que durante a segunda guerra mundial conseguiu escapar de ir para algum campo de concentração dos alemães escondendo-se deles debaixo do altar da capela quando esses invadiram o convento aonde ela morava.
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Durante a leitura do livro foram vários os trechos nos quais me emocionei pelo que têm de verdade e que por isso me fizeram crer que ele pode transformar-se numa novela, e de sucesso, sim, dessas que nos rendem personagens inesquecíveis. Imagine por exemplo Fernanda Montenegro interpretando o papel da velha parteira, Sá Norata, numa cena dessas.
“A velha chamou as filhas e se encaminhou para aquele palacete onde morava a família do médico. Chegando lá, disse poucas e boas para a ricaça e ordenou que Laura pegasse suas poucas coisas e viesse com elas para sua casa. Sem dizer nada, Laura seguiu aquela boa senhora e suas filhas, confiante em seu novo destino.
Chegando naquele lar humilde, foi recebida com todo carinho, entre lágrimas que escorriam pelos olhos das “meninas” de Sá Norata, enquanto a velha senhora dizia para minha mãe que, daquele dia em diante, ela era mais uma filha da casa e de lá só sairia casada, com moço bom e de boa família”.

Soror Vicenza passou a ser o nome de Laura quando foi para o convento. Aos 19 anos não conhecia nada além daqueles muros. O mundo fora era apenas um sonho. Não tinha a verdadeira vocação para seguir os votos de freira. Apenas ouvia falar de outros países, lugares e pessoas. Até que um dia como no Brasil faltava mão de obra para trabalhar em hospitais e colégios apareceram no convento à procura de voluntárias e com todas reunidas em um salão perguntaram “Alguém quer ir para o Brasil?”
E aquela moça inocente aguçando sua curiosidade levantou a mão e disse: “Eu quero!”

E foi assim que um dia a italianinha Laura, mãe de Soninha Moreira, veio da Itália, atravessou o mar e descobriu esse país sem imaginar que eu também seria adotado por sua filha, que considero minha mãe nas artes.

Diovani Mendonça

 

 


Introdução: 

Minha mãe e eu                                                                                                      



Um dia minha mãe veio da Itália, atravessou o mar e descobriu esse país.   Aceitou a nova pátria de coração aberto e aqui fincou suas raízes.

Aqui minha mãe encontrou o amor, construiu seu castelo e nele fez brotar os frutos desse amor.

De sua terra natal ela trouxe a música, pois lá se respira música e arte, e desde então ela sempre esteve presente em nossas vidas. 

Acho que cantei ao nascer!

As lindas melodias de sua juventude foram encontrando alento em meu pensamento, desde a tenra idade.

Sempre gostei de ouvir minha mãe cantar e com ela fui aprendendo a gostar de cantar também. Quando essa arte desabrochou de verdade dentro do meu pensamento, tomou conta de mim, e aceitei de corpo e alma o dom que Deus me havia premiado nesta existência.
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Cantar é me entregar de corpo e alma aos sons, à melodia e poesia que vou vivendo num êxtase total.

Um dia minha mãe nos deixou. Virou uma estrela a mais no firmamento!  Para ela eu canto a música italiana que ela tanto amava.

Minha mãe, Laura, foi uma mulher fantástica e deixou uma história de vida maravilhosa!
Adotou o Brasil como sua segunda pátria e, embora acalentasse o sonho de voltar um dia para abraçar sua mãe, seu pai e seus irmãos, esse dia nunca chegou.

                    

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No Brasil
       No Rio de Janeiro

O navio aportou no Rio de Janeiro. Os passageiros desembarcaram e as noviças se encantaram com as belezas do nosso país.   Era o ano de 1938.
Da sua chegada ao Rio de Janeiro, foi direto para o hospital da Congregação Franciscana, onde permaneceu trabalhando em serviços pesados de cozinha e limpeza geral.
                                                                                                                                                                      Era forte, muito corajosa e trabalhadeira. Em suas horas de folga, visitava os doentes, dava-lhes um banho, se necessário, prestava-lhes cuidados e atenção caridosa.  Não tinha estudos, seus conhecimentos eram apenas religiosos.

Somente muitos anos após a sua morte, olhando seus documentos, percebi que no passaporte constava uma autorização de permanência no país durante um ano.  Findo os dois anos, já em estado ilegal, a Madre Superiora tentou revalidar o passaporte, mas foi negada a sua permanência em 24 de maio de 1940.  

Foi então que a transferiram para o interior de Minas Gerais, sem que ela soubesse dos detalhes, para que ficasse escondida e ninguém pudesse encontrá-la.

Nunca lhe disseram a verdade, pois era forte, trabalhadeira e certamente faria falta se fosse deportada para a Itália.

Foi transferida então, para outro hospital da mesma congregação Franciscana, no interior de Minas Gerais, Itabirito.

Como acontece em pequenas cidades do interior mineiro e principalmente naquela época, Itabirito-MG não era diferente.  Terra de povo amistoso, acolhedor, mas também de pessoas interessadas em saber da vida alheia.

As freiras encontraram muito trabalho por lá.

Mamãe fazia amizades com todo mundo, embora tivesse dificuldade de se comunicar, uma vez que não falava a nossa língua. Porém, se esforçava para aprender, procurando ler os jornais, no intuito de entender melhor as palavras.   

Muitas vezes confidenciava com as amigas a vontade de deixar o convento, mas não tinha para onde ir e nem como voltar para sua terra natal.

Certa ocasião, comentando sobre esse assunto com a Madre Superiora, foi castigada e proibida de sair do hospital, o que lhe causou profunda tristeza.

Havia um jovem médico naquele hospital, no qual minha mãe confiava, e em uma de suas conversas, ela acabou lhe revelando a vontade que tinha de deixar o convento, e também sobre o medo do mundo lá fora, por não conhecer ninguém e não ter para onde ir.

A mãe do médico, pessoa de muitas posses, ao saber do assunto logo imaginou ter em casa uma boa empregada, pois conhecia os dotes da jovem.

Não demorou a oferecer-lhe abrigo, dizendo a ela que em sua casa seria recebida como filha, podendo sair do convento a hora que quisesse.

Com o coração cheio de esperança, acreditando nas promessas daquela senhora, e com a ajuda do seu filho médico, ela fugiu do hospital.

Foi morar com aquela família abastada, mas tão avarenta, que logo de início sentiu-se triste e arrependida.

Permaneceu na casa por dois meses, até que adoeceu, por falta de alimento adequado e uma vida quase escrava.

Sentia fome e os alimentos eram regrados. Não tinha aquela fartura do hospital, onde trabalhava muito, mas se alimentava direito.
                              







                                                                                                                                                                                                                                                                               Mãe Brasileira


Do outro lado da cidade, moravam Sá Norata e suas filhas, quase todas solteiras. Somente Izaura, a mais velha, se casou, mas não teve filhos biológicos, por isso adotou uma menina, Darcy, e criou com todo carinho.

Luiz, o marido de Izaura, era um homem trabalhador, porém gostava de beber e toda vez que voltava do trabalho, não deixava de tomar uma “pinga” no bar da esquina, para desespero da mulher.

pretendentes a vida toda, mas que nunca levou ninguém ao altar.  Foi escolhido depois, para ser meu padrinho. Na casa morava também o irmão de Luiz, João Pombo, solteirão, rodeado de

As filhas Maria, Graciana e Noratinha, eram muito conhecidas de todos. 

Noratinha, inclusive, era muito amiga de minha mãe lá no hospital, e ficou sabendo do que aconteceu por lá.  Conheciam também a família do médico e sabiam da fama deles.

A velha Sá Norata era parteira antiga, muito respeitada por todos na cidade, desde o prefeito até as maiores autoridades da cidade.

Era comum aparecer alguém em sua casa e lhe tomar a benção, uma vez que a maioria deles veio ao mundo pelas mãos daquela velha parteira, inclusive aquele médico lá do hospital que ajudou minha mãe a fugir do convento.

Foi então que Noratinha contou para a mãe o que estava acontecendo com Laura.

A velha chamou as filhas e se encaminhou para aquele palacete onde morava a família do médico.  Chegando lá , disse poucas e boas para a ricaça e ordenou que Laura pegasse suas poucas coisas e viesse com elas para sua casa.
Sem dizer nada, Laura seguiu aquela boa senhora e suas filhas, confiante em seu novo destino.

E foi assim que minha mãe conheceu sua verdadeira família aqui no Brasil.

Chegando naquele lar humilde, foi recebida com todo carinho, entre lágrimas que escorriam pelos olhos das “meninas” de Sá Norata, enquanto a velha senhora dizia para minha mãe que, daquele dia em diante, ela era mais uma filha da casa e de lá só sairia casada, com moço bom e de boa família.

Feliz, pela primeira vez, minha mãe se tornou parte daquela família que, na verdade, era sua primeira e verdadeira família.

À missa aos domingos, lá ia Sá Norata muito orgulhosa de suas filhas, sem distinção de cor.

Na cidade muito se comentou da freira que havia fugido do convento e que estava morando na casa de Sá Norata, mas ninguém se atreveu a falar nada diante daquela senhora e suas filhas, senão era desavença na certa. 

Qualquer comentário maldoso era briga com a família toda, e as filhas defendiam minha mãe a qualquer custo.


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O Moreira

Meu pai era um jovem de classe média, naquela pequena cidade, e junto com os irmãos: Luiz, Tonico, João e Tide, tinha uma pequena fábrica de calçados que se chamava Fábrica de Calçados Irmãos Moreira.
  
Eles tinham uma única irmã, Odete, a caçula de Vó Zica, que se casou com um turco e foi morar em Juiz de Fora. O casal teve uma única filha, Norma, que era a neta preferida de Vó Zica. Ela gostava muito do turco ricaço.

Papai participava do time de futebol, era o mais brincalhão nos carnavais e todos sabiam da sua fama de namorador e pé de valsa nos bailes da cidade.

Era um jovem honesto e trabalhador. Gostava dos bailes e da farra. Era disputado pelas moçoilas da época a rodopiar pelos salões. Não perdia um baile sequer.

No carnaval, sempre se fantasiava e comandava os blocos que desfilavam pelas ruas da cidade. Só aparecia em casa na quarta-feira de cinzas, e deixava a sua mãe aflita e preocupada. Porém, era muito amigo e companheiro de todos e estava sempre cercado de amigos, por todos os lados.

                                                                                                                                 
Ouviu falar de Laura, minha mãe, e logo quis conhecê-la.

Era conhecido de Honorata e suas filhas, e quando foi visitá-las, logo se encantou por Laura.

O amor dominou aquele jovem rebelde e ele começou a fazer planos para se casar com a moça.

D. Zica foi contra, pois jamais imaginou que seu filho pudesse se casar com uma moça comentada em toda a cidade, por ter fugido do convento e ter vindo de outra parte do mundo e que nem sequer sabia falar o mesmo idioma.

Mas de nada adiantou! Moreira correu a pedir Laura em casamento.

A velha Honorata sentou-se numa cadeira na sala de visitas: Moreira de um lado, Laura de outro, as filhas presentes.

Moreira fez o pedido, ouvindo em seguida o seguinte discurso: "somos pobres, mas muito honradas. Laura agora faz parte da nossa família e desejo fazer seu casamento como se fosse uma de minhas filhas. Não tenho condições de lhe dar todo o enxoval do casamento, mas faremos o que for preciso"

Moreira pediu permissão à Honorata para ajudar nas despesas, pois queria que Laura fosse a noiva mais bonita da cidade.

Foi assim que, com algum dinheiro, compraram tecidos, bordaram, fizeram o enxoval, o vestido e todos os preparativos para a festa.

O Casamento



Honorata e as filhas puseram-se a preparar o enxoval para o casamento.

De gênio difícil, Dona Zica, que veio a ser minha avó paterna, era uma velhinha baixinha e muito ranzinza.

Por causa do seu temperamento, acabou se tornando inimiga de todos.

Todos queriam ver o casamento da "freira" com aquele Don Juan da cidade e a casa ficou pequena pra tanta gente.

A festa foi completa! Tinha bolo de noiva, muita comida e doces à vontade.

Meu pai arranjou uma bela casa, toda mobiliada, e pra lá foram os noivos, depois da festa. Assim começou a nova vida dos dois. 

                                                                                                                                   A Fábrica de Calçados

Junto com alguns poucos funcionários, meu pai e os irmãos administraram a pequena fábrica de calçados que trazia na entrada os dizeres: Fábrica de Calçados Irmãos Moreira.

Infelizmente, não foram muito bem sucedidos naquele empreendimento e a falência foi inevitável.

Quando meus pais tinham quatro anos de casados, foi decretada a falência da empresa.

Foi um tempo muito sofrido para os dois, e na ocasião, a ajuda da vó Norata foi fundamental para que eles conseguissem se reerguer.



                                  Os Filhos
                 

Minha mãe e sua nova família foram morar perto da casa da vovó Norata e suas filhas, naquela pequena cidade em que todos nós viemos ao mundo.

Primeiro a minha irmã mais velha, que se chamou Maria José, a qual vó Norata e as tias logo adotaram e não davam sossego à menina. Era de colo em colo o tempo todo!

Mamãe queria que minha avó batizasse minha irmã, porém pela idade já um tanto avançada, ela disse que a menina ia crescer sem madrinha.

De tanto minha mãe insistir, aconteceu o batizado, com direito a festa na casa da avó/madrinha e tias, com muito doce e salgado para comemorar.

Apesar da idade, vovó viveu até os cem anos, e assim acabou conhecendo os bisnetos e tataranetos, vindos da nossa família.

Logo em seguida nasceu o Jorge, enquanto minha irmã não havia completado nem um ano de vida.  Naquele tempo era assim: os filhos vinham todos de uma vez.

Apesar dos filhos pequenos, minha mãe sempre procurou manter a casa muito arrumada. Era caprichosa e limpava tudo com muito gosto.   Meu pai lhe fazia elogios e viviam muito bem.

Minha avó Zica nunca aceitou o casamento, e tampouco os netos.

Manteve essa opinião a vida toda, e por causa disso, tivemos pouco contato com ela.   Pena não ter usufruído de uma bela convivência com os netos!

Alguns meses depois, meus pais se mudaram para uma casinha mais modesta, ainda perto da casa da vovó.
Um ano depois eu nascí, a caçulinha, Sonia Maria.
Quando eu nascí, não tinha nome ainda escolhido quando meu pai, ao ler um jornal, viu uma foto de um homem carregando uma criança que se chamava Sonia Maria.  Chamou minha mãe e disse: -“já sei qual o nome daremos a nossa filha: Sonia Maria”.  E assim o foi.

Pronto, aí estava a família brasileira que minha mãe havia constituído! 

Como Deus sabe o que faz, depois que eu nascí, minha mãe não pôde mais ter filhos, e ficamos somente nós três.

Morávamos em uma casinha simples, porém com um bom quintal, coisa fundamental naquela época, pois era lá que a gente brincava. 

Enquanto nós brincávamos, mamãe aproveitava para costurar sapatos e ajudar meu pai.

Não eram muito fáceis as brincadeiras, pois sendo duas meninas e um menino, sempre havia disputas, quando montávamos a casinha. 

Geralmente, a Biseca, apelido que demos a nossa irmã mais velha, era a mãe, o Jorge o pai, e eu a filhinha deles.   

De vez em quando, o Jorge era o dono da “venda”, cargo que a Biseca também cobiçava, e com isso havia discussão. 

Alguns caixotes vazios transformavam-se em ônibus e Jorge sempre queria ser o motorista, mas como Biseca era pirracenta, acaba querendo exercer a mesma função que o irmão.

Certa vez, enquanto almoçávamos, Jorge enterrou alguns dos nossos brinquedos no quintal e então foi aquela choradeira e muito castigo.  Coisas de criança!

Mamãe fazia amizades com toda a vizinhança.

Perto da nossa casa morava a Dona Tilma, costureira que fazia as nossas roupas, e com a qual mamãe construiu uma grande amizade.   

Muitos anos mais tarde, minha mãe acabou sendo o cupido na vida dessa senhora, pois foi ela quem lhe apresentou o companheiro Otacílio, com quem ela partilhou a vida.   Foi uma eterna amizade!


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Juiz de Fora
    
Sem condições financeiras, logo após a falência, os irmãos Tide e Papai, juntamente com suas famílias, o irmão Tonico que nunca quis se casar e a mãe, Dona Zica, decidiram se mudar para Juiz de Fora, onde morava Odete com sua família.

Em uma periferia da cidade, moravam em uma pequena casa, todos juntos: Tide com a mulher e quatro filhas, Papai, Mamãe e os três filhos, vovó Zica e Tonico.   

No quintal armaram um barraco de zinco, onde consertavam sapatos e seguiam a vida.

Não foi fácil conviver dessa forma, com tanta gente debaixo do mesmo teto.

As crianças brincavam e brigavam e as mães acabavam tomando partido, o que dificultou ainda mais a convivência entre eles.  

As quatro primas eram cheias de vontade e sempre queriam mandar nas brincadeiras.  

Vó Zica ficava sempre do lado das netas preferidas, e não se cansou de menosprezar minha família.

Meu irmão Jorge, era o único menino, em meio às seis meninas, e cada vez que montávamos o ônibus, feito de caixotes, sempre tinha uma das primas para disputar com ele o lugar de motorista, o que sempre causou uma confusão danada, sendo necessária a intervenção da minha mãe para separar a briga.

Chegou o dia em que as coisas pioraram. Uma tamanha briga entre as duas mães, obrigou meu pai a sair daquela casa com a família.   Vó Zica era muito orgulhosa e não suportava aquela vida humilhante, descarregando seu azedume em mamãe, de quem nunca gostou. Nunca se interessou nem mesmo pelos netos!    

Meu tio Tide e sua família foram morar na cidade de Congonhas, onde havia parentes de sua mulher. Foi lá que ele estabeleceu sua pequena oficina de consertos de sapatos.

Era um bom artesão e começou ali sua fama de carnavalesco. Criava e confeccionava enormes bonecos para o carnaval e sempre desfilava dentro de um deles.  

Em toda a sua vida futura, ele nunca mais saiu daquela cidade, onde as filhas cresceram e se casaram e seus netos vieramao mundo.

Tio Tonico faleceu ainda solteiro e jovem. Vó Zica foi morar com a filha Odete.

Tio João casou-se e teve um único filho, Amadeu. 

Logo veio morar em Belo Horizonte, onde permaneceu até o fim de seus dias, seguindo a mesma profissão de sempre, ou seja, sapateiro.   

Tio Luiz foi para o Rio de Janeiro, também se casou e teve filhos por lá.

Em outra periferia de Juiz de Fora, meus pais foram morar em um porão, e acabaram passando por muitas dificuldades, mas minha mãe se sentia feliz por ter a liberdade de estar só com sua família.  

Decidiu empenhar-se numa luta enorme e se desdobrou para ajudar meu pai a manter os filhos.  Começou aí uma nova fase em nossas vidas.

Minha mãe fazia muitas quitandas, sonhos recheados, biscoitos e muitas delícias que aprendeu com a vó Norata, enquanto meu pai vendia os produtos nos bares da vizinhança.

A freguesia aumentava a cada dia, pois era tudo realmente muito saboroso e bem feito. Papai saía de bicicleta, entregando tudo nas vizinhanças e no comércio.

Além disso, minha mãe lavava roupas para fora e contribuía com enorme esforço para ajudar meu pai nas despesas da casa. 

Com tudo isso meus pais seguiam felizes e com as crianças muito bem cuidadas.

Saíamos para passear aos domingos, pelos parques e jardim Zoológico, onde brincávamos. Era só alegria!

Lembro-me que, quando voltávamos para casa, papai sempre parava na padaria do bairro, onde faziam um pão doce em formato de jacaré, e comprava um jacarezinho para cada um de nós. Ficávamos muito felizes com aquele seu gesto tão simples e carinhoso.

Lembro-me dos vestidinhos iguais que eu minha irmã vestíamos, alguns com bordados feitos por nossa mãe.  Em particular, me vem à memória um vestido de barrado com galinhas e pintinhos, que eu adorava vestir.

Enquanto minha irmã mais velha chegava à idade escolar e iniciava seus estudos, Jorge e eu crescíamos brincando satisfeitos.
                                                                                                                             



Certo dia, Noratinha e Graciana, filhas da Vovó Norata, apareceram lá no porão, simplesmente para saber como estava a nossa vida lá em Juiz de Fora.  

 A velha mãe adotiva nunca se descuidou daquela filha que veio do outro lado do mundo. 

Após alguns dias de total convívio, elas foram percebendo as dificuldades pelas quais a nossa família estava passando e, mesmo contra a vontade de minha mãe, insistiram e acabaram nos levando, Jorge e eu, para Itabirito, onde passamos uma temporada com nossa avó.                                                                                                                 

Sem as duas crianças em casa, mamãe conseguiu trabalhar melhor, apesar de sentir muita saudade de nós. 



      
                                              A Casa da Vovó

A casa de Vó Norata era sempre muito movimentada e os vizinhos pareciam uma família só. Era um entra e sai o dia todo. 

A casa, feita de pau-a-pique, possuía um quintal que ocupava um quarteirão inteiro, com muitas árvores frutíferas no quintal, uma horta, galinheiro e alguns porquinhos para engordar.

Um papagaio, que falava o nome das pessoas da casa, cantava e repetia tudo o que ouvia.
Tinha também um quarto de costura, onde as filhas Izaura e Maria costuravam sapatos para a fábrica da cidade.

Em um dos cantos da casa havia uma imensa cama, onde os netos gostavam de ficar conversando.

Existia ainda uma grande sala de jantar, com enormes cristaleiras abarrotadas de louças finíssimas e cristais, que raramente eram usados.

Da janela via-se a horta e os galhos do pé de jambo, e ao fundo, uma cerca toda de bambu, muito comum em todas as casas da época. 

De vez em quando, alguém batia na porta pedindo para cortar um bambu para fazer vara de pescar. 

Na cozinha de cimento, além da pia, havia uma mesa e um fogão a lenha, o qual ficava aceso o dia todo, para aquecer a serpentina que levava a água quente até o chuveiro, aquele chuveirão sempre quentinho.

Tinha também uma bacia grandona, onde a gente sentava para tomar banho debaixo do chuveiro.  

Era a madrinha Maria, que nós apelidamos carinhosamente de Guia, quem dava banho na gente, quando pequenos. Esfregava a bucha, (daquelas colhidas no quintal) e usava sabão feito em casa. Depois abria o chuveiro para enxaguar.
   
Lembro-me ainda, do momento em que ela pegava uma ponta da toalha, torcia e fazia uma espécie de cotonete para enxugar os nossos ouvidos.


Sábado era o dia de todas lavarem a cabeça. Depois ficavam no sol, para secar os cabelos.

Faziam suas tranças, cada uma de um jeito sempre igual!

Natinha passava tanto talco que ficava parecendo um palhaço e a gente ria dela, recebendo em troca os seus xingamentos. Era muito divertido!

As prateleiras ficavam na despensa, ao lado do banheiro, onde não faltava um saco de açúcar para fazer os doces. 

A goiabada, depois de pronta, era colocada em caixeta com tampa parecida com aquela dos velhos estojos de guardar lápis na escola, porém um pouco maior, onde ela ficava armazenada o ano inteiro.

 As compotas de laranja da terra, a marmelada, o doce de figo, sem faltar o queijo para acompanhar, tudo isso era guardado nas prateleiras da despensa para o ano todo.  Nunca faltou doce na casa da vovó.

Naquela época, não havia geladeira e tudo era acomodado de forma peculiar para não estragar.  

Uma grande panela de pedra, cheia de gordura de porco, acomodava as almôndegas que iam sendo retiradas aos poucos para o consumo. 

As lingüiças de porco, as peles e algumas carnes, eram defumadas e permaneciam penduradas no teto, acima do fogão.  

Tia Izaura pendurava ali as cascas de laranja que usava para acender o fogo, de manhã. Dizia que não tinha nada melhor.

Um corredor com piso de tijolos levava aos quartos. O primeiro era o da Guia, junto com a Dinha Graciana, que foi minha madrinha.

Mais ao fundo, o quarto da vovó e da Natinha, como chamávamos a tia Honorata, que tinha o mesmo nome que ela.
Ali tinha outra cama onde a gente dormia, quando éramos crianças.

Muitas vezes, eu ia para o canto da cama da vovó, para ouvir as histórias que ela contava.

Gostava de ouvi-la dizer que o dinheiro era vintém.

Ela dizia também, que muitas vezes saía pela noite a cavalo, para atender alguma mulher que ia ter um bebê, não importava a hora.

Era parteira, e quando alguém chamava, ela ia correndo colocar mais uma vida no mundo.

Também contava que, quando se casou, era ainda quase uma criança e ainda brincava de bonecas, porém Seu Jorge, seu marido, sempre foi muito bom para ela. 

Não cheguei a conhecê-lo, nem tampouco a minha madrinha Elvira, uma de suas filhas que faleceu quando eu ainda era bebê.


Mais na frente da casa ficava o quarto do meu padrinho Dinho, apelido pelo qual o chamávamos. 

Logo na entrada, ficava a sala à direita, e logo após, uma porta que ia para o quarto da Tia Izaura, a única das filhas que havia se casado. Seu marido, o tio Luiz, era irmão do Dinho.  Não tiveram filhos biológicos, mas adotaram a Darcy.
Casamento de Darcy, conduzida por tio Luiz, à frente, eu de dama de honra, 1953.

Tio Luiz era sapateiro e trabalhava numa oficina. 

Ao voltar para casa, à tarde, ele sempre entrava no velho bar, pois gostava de uma bebida, o que deixava tia Izaura desesperada e pronta para mais uma briga.
Ele nunca respondia, ficava calado e ia dormir cedo, sem incomodar ninguém, deixando a mulher falando sozinha.

Tio Luiz morreu de repente, deixando a viúva e a filha adotiva.

Ele era um homem de poucas palavras, mas lembro-me de sua bondade e carinho.

O Dinho, meu padrinho João Pombo, irmão do Tio Luiz, morava no quarto da frente da casa.

No quarto dele havia um rádio bem grande, onde todo mundo se concentrava para ouvir a novela “O Direito de Nascer”. Trago na lembrança a imagem de todas elas, enxugando as lágrimas com a ponta do avental, ouvindo o drama no rádio. Era uma choradeira só, quando acabava a novela.

No quarto tinha uma mesa, com uma imagem de São Jorge, e um fogãozinho de alumínio, com as panelinhas em cima, coisas que eu não cansava de admirar.  Na parede, havia uma coleção de flâmulas de todos os tipos.

O Dinho, que era metalúrgico, trabalhava na usina Esperança, e alguns anos depois se tornou presidente do sindicato. Era Getulista convicto.

Com ele aprendi as boas maneiras e a esmerada educação, que eu nunca mais esqueci.

Sempre ia encontrar-me com ele, quando vinha do trabalho, e acabava de entrar em casa carregada em sua bicicleta.

Depois do banho, assentava à mesa ao seu lado para jantar.  Meu prato, o garfinho e a faquinha, ficavam ao lado dos dele e ele sempre me ensinou como me portar à mesa com educação.
   
Ele gostava de contar que eu tinha apenas três anos de idade quando me levou para passear em Ouro Preto.

Ao chegar num armazém da cidade, daqueles muito comuns na época, onde se encontrava um pouco de tudo, e onde os fregueses possuíam um caderno para anotação de suas compras, observei que havia muitas panelinhas de pedra-sabão e de ferro em cima de um fogãozinho de brinquedo, parecido com aquele que tinha no quarto dele e que eu não me cansava de olhar e desejar.

Ao lado do balcão, existiam alguns balaios com verduras e legumes, para serem vendidos.

Ele então me perguntou: “Sônia Maria (assim ele me chamava), diga o que você quer e o Dinho compra para você!”

Acostumada no quintal e na horta da vovó, eu ignorei todos aqueles brinquedos e apontei para o balaio de jiló.  Todos estranharam uma menina daquela idade gostar de jiló, e ele contava isso para todo mundo com o maior orgulho. 

O jiló era como uma fruta para nós, que éramos habituados a comer de tudo um pouco. O jiló, usado nas nossas refeições, era colhido diretamente do pé.
Outra coisa que era um verdadeiro mistério nessa época, era a tal Missa do Galo, no Natal. 

Eu ouvia todo mundo dizer que ia à Missa do Galo e ficava curiosa para saber como era, mas todos ficavam me iludindo com histórias. Até que um dia decidi, por mim mesma, descobrir como era a tal missa.

Foi difícil aguentar esperar a meia noite para ver o tal Galo na Missa!

Minhas tias contaram que não dei sossego a elas na igreja, sempre perguntando pelo galo que eu não conseguia ver em lugar nenhum.

Por fim, voltei pra casa no colo de alguém, dormindo um sono profundo. 

Quando acordei, ainda estava chateada por não ter visto o galo da missa. 

As velhas ficavam rindo da minha inocência.

Era como a história do Papai Noel, a gente se esforçava para não dormir, esperando pelo “velhinho”, mas era impossível aguentar tanto tempo acordada!

Ficava somente o sapatinho na janela, perto do presépio e a alegria dos presentes, no dia seguinte.

  

E por falar em presépio, era sempre muito divertido ajudar a tia Izaura na montagem e colocação das peças.

 A gente curtia ver os personagens tão desproporcionais que faziam parte da decoração.  

Por exemplo: em pleno deserto cheio de areia branquinha, aparecia uma lagoa repleta de patinhos, um jacaré, que era manso, e alguns bichos selvagens, como leão, tigre, elefante e girafa.  Ficavam todos juntos.

 O lago era feito com um pedaço de espelho, areia em volta e alguns galhos de mato.

 Um casal vestido de noivos também estava lá, mas uma das coisas que chamava a nossa atenção era um menininho de cor negra, chorando, sentado em um pinico, onde havia os seguintes dizeres: quero canjebrina, que a tia Izaura traduziu como cachaça. 

O presépio era enorme, ocupava quase metade da sala e até chegar ao Menino Jesus, São José e Nossa Senhora, na gruta, os olhos passeavam por muita coisa divertida. 

 Havia também um macaco, que disputava a atenção com a serpente e o anjo. 

Tinha até uma banda de música, onde os componentes tocavam de uniforme, em plena areia do deserto.  

O certo é que a gente ficava horas e horas a imaginar coisas e situações naquele presépio.

No dia seguinte, no Natal, as crianças saíam para a rua ostentando seus brinquedos que, naquela época não duravam tanto, pois eram feitos de louça ou papelão. Ainda não existia plástico.  

As bonecas eram de papelão, por isso não podiam tomar banho.

E quando tentávamos colocá-las na água, elas se desmanchavam. Era uma choradeira geral!

Os jogos de xícaras, com o bule e a bandeja, confeccionados em louça ou lata, no formato de miniatura, encantavam qualquer olhar de menina, pois gostávamos de brincar de casinha. 

Dentre os brinquedos que ganhávamos, além do ioiô, tinha também o bilboquê, que era constituído de uma bola de madeira, com um orifício, presa por um cordel a um bastão pontudo onde ela deveria se encaixar.

A manivela para soltar pipa, também era um dos presentes que a gente gostava de ganhar, além dos carrinhos de rolemã.

Na cidade tinha um programa de auditório na rádio, no qual fui inscrita, e lá cantei aos três anos de idade.

Todos se orgulharam da minha apresentação, pois eu cantei direitinho o que me haviam ensinado.  Foi meu primeiro sucesso! 

Lembro-me bem, que eu não conseguia alcançar o microfone, por isso foi preciso que me colocassem em cima de uma cadeira.

E eu fiz bonito, como diziam as tias!

 O Jairo, filho da Tia Nininha, que morava perto de casa, foi quem me ensinou a cantar direitinho. 

Tenho várias recordações de nós dois, sentados no jardim, em frente de casa e ele me ensinando a letra da música. 

Muitas pessoas se juntaram em volta do rádio para me ouvir cantar.

Outras amiguinhas da vizinhança também foram se apresentar no programa, como a Edna, filha mais velha de Dona Zélia.  

As filhas da vovó, sempre me consideravam o xodó de todos e, por azar, no momento em que a Edna começou a cantar, o rádio da casa deu defeito e elas ficaram dizendo que a culpa era dela. 

Mais tarde, aprendi a cozinhar no enorme fogão de lenha, onde era preciso colocar um banquinho para que eu alcançasse as panelas.

Eu me orgulhava de saber fazer uma sopa de legumes, que o Dinho saboreava com prazer, não sem antes elogiar a cozinheira.
 


Do lado de casa, moravam duas amiguinhas inseparáveis, com as quais mantive contato a vida toda.

Uma delas, a Maria José, para nós era Nem, assim como a minha irmã que tinha o mesmo nome e acabou ganhando o apelido de Biseca, para o resto de sua vida.

 Aliás, em minha terra, todo mundo tem apelido, com exceção de meus padrinhos, que sempre me chamaram de Soninha.

Quando Nem se casou e teve sua primeira filha, de nome Adriana, fui chamada para batizá-la.

A outra era a Edna, filha da comadre Zélia, que teve muitos filhos.

Eu fui madrinha de batismo de sua filha Vaninha, quando eu ainda era criança e mal sabia carregar um bebê no colo.


  
Nos tempos de aula, éramos poucas crianças a brincar na vizinhança.

Porém, ao chegar o período de férias, sempre apareciam outras crianças, cujos pais haviam se mudado para a capital, mas ainda conservavam parentes e amigos na terra.

 Elas traziam as novidades da cidade grande e chegavam com muita vontade de brincar com a gente.  O terreiro da casa da Nem era o preferido, por ter mais espaço para as brincadeiras inocentes da época.

Naquela época, usava-se a imaginação para brincar de finco, pular maré, jogar bolinhas de gude, passar anel, jogar conversa fora.

Não tínhamos nada além do rádio. Os brinquedos eram de louça, de lata ou papelão e ainda não existia o plástico. Mas éramos muito felizes! 

Em todos os quintais havia árvores frutíferas e, de vez em quando, subíamos nos pés para saborear algumas delas.

Na casa da vovó, tinha enormes pés de jabuticaba, vinte e dois ao todo: laranjas, jambo, jatobá, goiabas, cana docinha, bananeiras, ameixa, marmelo, cidra e até um pé de maçã e um de limão doce.  

E pensar que a gente era obrigada a almoçar e jantar, senão tinha um bom purgante para abrir apetite!   

Aliás, nem gosto de me lembrar dos purgantes. Era a parte ruim da infância!
Eles estavam sempre lá, nos esperando, caso a gente sentisse algum mal estar.  

Fora isso, uma boa benzedura da vovó curava quase tudo, além das simpatias. 

As pessoas conhecidas traziam as crianças para benzer, e minha avó rezava com muita fé, certa de acabar com os males que acometiam aquela criança.
As mães saiam de lá satisfeitas e agradecidas.

As doenças, como elas comentavam, quase não se via nos dicionários: espinhela caída, vento virado, sapinho, dentre outros, cujos nomes achávamos cômicos, porém não podíamos rir dos mesmos.

Nos primeiros anos de vida, tivemos quase todas as doenças das quais, nos tempos atuais, as vacinas conseguem prevenir. Por exemplo: Caxumba, catapora, varicela, sarampo, sem contar com a asma que rondava minha vida e a do Jorge, meu irmão. Às vezes, me levavam ao hospital para uma sessão de oxigênio. 

Nas madrugadas, quando a asma me atacava, era um momento em que todos se levantavam da cama, e eu podia escolher o colo em que queria ficar. 

Como era muito manhosa, eu ficava chamando pelo meu padrinho, depois pela madrinha e assim, de colo em colo, as horas iam passando. Quando não havia melhora, corriam para o hospital que ficava pertinho de casa.

Quando chegava a época das jabuticabas, a gente quase não descia do pé. Ficávamos lá em cima, escolhendo as maiores e de casca fininha, até nos fartarmos.

 Assim que alguém nos chamava para o almoço, ou para tomar banho, a gente descia, fazia o que tinha que fazer, e depois continuávamos a brincadeira.

A segunda-feira era o dia de lavar a roupa.  Tinha um grande pilão que ficava num canto da coberta, bem junto à porta da cozinha, porém nesse dia, ele era colocado no terreiro. Em cima dele, era colocada uma bacia cheia de água morna e uma barra de sabão caseiro. Ficávamos em volta dela, esfregando as roupas à mão, e depois as jogávamos no tanque.

A Guia ia torcendo as roupas e colocando-as no varal ou quarador, uma moita de bambu.  Era o modo de alvejar a roupa.

A gente ria das peças no varal, todas feitas em casa mesmo, de pano de saco alvejado.

Aquelas calçolas, algumas parecendo ceroulas, os sutiãs muito engraçados, principalmente os que a Guia usava, que tinham apenas uma tira de pano, com duas preguinhas na frente, uma vez que ela era totalmente desprovida de seios.

As combinações usadas debaixo dos vestidos eram uma graça, mas não podíamos comentar, caso contrário, a vara de marmelo andava solta.

Guia e Natinha usavam calcinhas tipo uma bermuda de saco alvejado, com barbante na cintura. A gente se escondia para rir.

As roupas eram passadas com ferro de brasa. De um lado ficava a Guia, e do outro a Natinha. De vez em quando elas voltavam ao fogão, para reabastecer o ferro com novas brasas, assopravam por um orifício e o ferro esquentava. 

Muitos anos mais tarde, elas ganharam um ferro elétrico de presente, o que melhorou bastante o trabalho delas.

O ferro elétrico, longe dos automáticos de hoje, tinha uma tomada na parte de trás, que era retirada do ferro, quando ele estava muito quente, e depois recolocada, assim que o mesmo esfriasse.  O fio ficava dependurado num benjamim na boquilha da lâmpada.   

Lembro-me do dia em que cheguei correndo, para dar um recado da vizinha para a Guia e, de tão ansiosa, nem percebi que havia encostado o dedinho no fio do ferro. Foi um choque enorme e fui parar longe! Com isso, o recado nem foi dado, pois todo mundo chegou para me acudir. Felizmente foi só um susto. 

A sala de jantar ficava cheia de roupas para passar, pois era a roupa da semana toda, da casa e das pessoas.   As tias iam passando, dobrando e colocando nas cadeiras. 

Certo dia, rimos muito da Guia. Ela era uma pessoa simples, e de vez em quando falava alguma coisa engraçada, sem perceber. Tinha acabado de chegar uma visita, quando elas passavam a roupa, o vizinho Fortunato, conhecido pelo apelido de Farofa.  Assim que ele entrou na sala, Guia foi logo dizendo:
“Compadre farofa, tira a roupa e senta!” – ela estava se referindo às roupas que estavam na cadeira, porém todo mundo começou a rir e Farofa, se aproveitando da situação, foi logo querendo saber da minha avó, que negócio era aquele de ter que tirar a roupa pra sentar.  Esse episódio, tão engraçado, foi comentado durante muito tempo.

Uma das coisas que ficaram guardadas na memória eram os colchões da casa da vovó.  Eram daqueles colchões cheios de palha de milho!

Sempre pela manhã, ao acordar, a gente gostava de enfiar a mão numa abertura que havia na parte de cima do colchão e chacoalhar as palhas, para que ele se levantasse e ficasse bem alto. Era uma brincadeira que nós, crianças, achávamos muita graça em fazer. E era gostoso deitar naquele colchão. Ninguém reclamava de dor na coluna, problema que os ortopédicos de hoje ainda não conseguiram resolver totalmente.

O chão era quase todo de tijolos, somente a sala e dois quartos eram de tábua. 

Quando ficamos mocinhas, eu e Biseca gostávamos de encerar a casa, o que nos dava um trabalhão, já que não existiam enceradeiras naquele tempo.
O velho escovão pesado fazia brilhar aqueles tijolos! 

Quando começaram os namoros, nos esforçávamos mais ainda para mostrar o que sabíamos fazer.

No dia de assar quitandas, no forno tipo cupim, que ficava no quintal, a gente ajudava a fazer os biscoitos de polvilho, as rosquinhas, as broinhas de fubá e os pães, sempre em volta da mesa na sala de jantar.

À tarde, íamos levar um pouquinho de cada guloseima, para as comadres da vizinhança.

Por sua vez, elas também retribuíam, trazendo suas quitandas.  Era uma fartura que nunca acabava. Existia uma amizade entre os vizinhos que hoje não se vê mais.

O cuscuz, recheado com queijo, era disputado no café da tarde.
E por falar em café, era um produto colhido no quintal, torrado e moído para depois ser coado naquele velho coador de pano.
 
Eu sempre gostei do café bem forte, e sabendo disso, a Tia Izaura sempre tirava um pouquinho para mim, quando começava a passar o café, numa canequinha esmaltada.  Quando eu não estava por perto, ela colocava a canequinha na chapa do fogão, para eu tomar depois.  Se esfriasse, ela jogava um pouquinho de água na chapa e aquecia o café na canequinha mesmo.  São pequenos detalhes que nunca esqueci.


No dia de matar o porco, a vizinhança toda aparecia para ajudar, e ao chegar a tarde, já estava tudo pronto: as linguiças, chouriços e torresmos.

Na saída, cada um levava sua porção, o que acontecia nas outras casas também. Tudo era festa, e na maior harmonia e amizade.

As frutas no quintal tinham a mesma história.  Natinha, a mais atirada, era quem subia nos pés de jabuticaba, enchia o embornal, e levava para as comadres da vizinhança. Havia uma troca de gentilezas. Embora existissem jabuticabas em todos os quintais vizinhos era costume essa retribuição.

A horta abastecia a cozinha. Nunca faltava couve com angu, taioba, ora pro nóbis e outras verduras, que a gente ia conhecendo e aprendendo a gostar, como o jiló, por exemplo.

Existiam ainda os chás, utilizados no tratamento de várias doenças, tais como: resfriado, dor de barriga, dor de cabeça ou quaisquer outros sintomas.

 Um bom chá de erva cidreira, de funcho, boldo, lozna e uma infinidade de outras plantas, eram sempre melhor que qualquer remédio de farmácia.

 Aliás, quase não se falava em remédio de farmácia, a não ser o Calcigenol, que meus pais traziam de vez em quando, e o óleo de fígado de bacalhau que era despejado na boca contra nossa vontade.  Ficou na memória aquele gosto horrível que sentimos até hoje.

Alguns medicamentos da homeopatia também já eram conhecidos e usados, como a Beladona, cujo nome eu sempre achei bonito, motivo pelo qual eu tomava sem reclamar.



 


Durante o mês de maio, era festa na igreja o tempo todo, e as meninas vestiam-se de anjo para coroar Nossa Senhora e acompanhar a procissão.

Eu participei da coroação até os meus 12 anos, e embora ainda muito pequena, ficava orgulhosa de poder prestar essa homenagem a Nossa Senhora.

À noitinha, era a hora de fazer amêndoas no tacho. Quatro telhas curvas eram colocadas sobrepostas no chão, duas de cada lado, e dois montinhos de brasas acesas entre elas. O tacho, cheio de coco picadinho ou amendoim, era colocado por cima, e as tias assentadas em banquinhos bem baixinhos, iam tombando o tacho de um lado para o outro, enquanto regavam o conteúdo com uma calda quente que ficava no fogareiro ao lado.

Ali iam se formando deliciosas amêndoas, que depois eram colocadas em saquinhos de papel, e em seguida levadas para as barraquinhas da igreja.  Um tacho de amêndoas levava dias para ficar pronto!

A bala delícia e os pirulitos eram outras iguarias que não podiam faltar. O bom bocado de coco, os cajuzinhos e outra infinidade de docinhos, os pastéis de angu recheados com umbigo de banana, nem se fala... A gente ali, aprendendo a fazer as coisas e comendo tudo que pudesse.

                       O Jorge

Apesar de todos os cuidados e atenção que nós tínhamos na casa da vovó, certo dia, Jorge meu irmão, foi acometido por uma forte dor de barriga e os primeiros cuidados, naquela época, consistiam em aplicar um bom purgante. Disso eu não tenho saudades! 

Não sei por qual motivo tínhamos que tomar o famoso óleo de fígado de bacalhau.  Ainda bem que tinha o Calcigenol, e se deixassem a gente tomava o vidro todo.

Todo mundo pensou que a dor havia sido causada por ovos que a galinha estava chocando. 

Tínhamos a mania de comer os ovos quentinhos, assim que as galinhas acabavam de botar. Tão logo ouvíamos o cocorocó, a gente corria para pegar os ovos.

Naquele dia, porém, o mal estar que o Jorge sentiu foi só piorando. Como a dor não passava, minhas tias foram obrigadas a levarem-no ao hospital, que era pertinho da casa da vovó. Ele precisou ser operado às pressas.   Um apêndice supurado acabou complicando o seu estado de saúde e a presença dos pais tornou-se inevitável.

Meus pais juntaram as poucas coisas que tinham e voltaram para Itabirito, a fim de cuidar do meu irmão Jorge.  

Uma casinha foi arrumada e lá se estabeleceram de novamente.    

Meu pai foi trabalhar com um amigo, que era proprietário de uma reformadora de calçados e, com muita ajuda da vovó Norata, aos poucos foi se reerguendo.

Jorge contava seis anos, quando foi surpreendido por aquele apêndice e permaneceu prostrado, se recuperando muito lentamente. Porém, por ironia do destino, surgiu um tumor nas suas costas que, segundo os médicos, talvez o levasse a outra cirurgia.  

Cercado de todos os cuidados, com aquelas tias rezando ao redor da cama, as promessas feitas ao Bom Jesus, como a de carregar Jorge nas costas pelo morro acima até a pequena igrejinha, no ponto mais alto da cidade, enfim, meu irmão acabou se recuperando, e nem precisou ser operado de novo.

Algum tempo depois, lá se foram os familiares cumprirem a tal promessa, fazendo o enorme sacrifício de carregar Jorge, no colo, e subirem ladeira acima.

O menino, após ter sido tão bem cuidado, estava gordinho e bem pesado.   

Foram algumas horas de longa subida, com um tempo para rezar o terço e a descida de volta pra casa, com Jorge tirando proveito de tantos colos para lhe carregar.

Papai seguiu trabalhando com o amigo José Bento, companheiro de longos tempos, em sua oficina de conserto de sapatos.

José Bento casou-se e foi morar em Ponte Nova, cidade onde residia a família de sua noiva.    

Lá estabelecido, ele convidou papai para acompanhá-lo e montarem juntos uma nova oficina na cidade.

Aventureiro, papai aceitou o convite de José Bento e partiu com sua família para a vida nova.

PONTE NOVA

Estabelecidos modestamente, fomos todos para a nova cidade. Papai trabalhava fabricando calçados, enquanto mamãe costurava na parte da noite.
Durante o dia, ela lavava e passava roupa da vizinhança, para ajudar nas despesas da casa.

Mamãe sabia cozinhar muito bem, e logo decidiu montar uma pensão, para comerciários que trabalhavam perto da nossa casa. Todos elogiavam muito a sua comida!

Algum tempo depois, papai adoeceu com forte dor de estômago. Foi diagnosticado, pelo médico, como sendo uma úlcera. Teria que ser operado,   porém, naquele momento, não tínhamos condições financeiras para arcar com as despesas de hospital.

Meu pai passou por um longo período de sofrimento. Prostrado, permaneceu em cima de uma cama durante anos, enquanto mamãe trabalhava para manter a família. 

Foi então, que ela resolveu procurar o Dr. Cottinha, suplicando-lhe que operasse papai, pois ela trabalharia e pagaria a cirurgia.  

O médico atendeu ao seu pedido. Papai foi internado, operado e passou um bom tempo em recuperação, recebendo atenção e carinho de toda a família. Nada lhe faltou, até que se restabeleceu de vez.
   

Minha mãe enfrentou tudo sozinha, trabalhando e criando os filhos, até que papai ficasse bom de novo.
Nós começamos a freqüentar a escola, e a vida foi melhorando. Papai arranjou trabalho no cinema da cidade, na função de bilheteiro e a pensão estava indo muito bem.

Foi então que surgiu uma oportunidade para a família.   





O HOTEL ITÁLIA-BRASIL

Havia um hotel sendo arrendado em Ponte Nova e logo mamãe se entusiasmou com a notícia.

Papai foi conversar com o dono e, depois de tudo acertado, os dois se mudaram para o velho hotel.

Com muito esforço e bastante dedicação, transformaram aquele prédio no Hotel Itália Brasil, cuja fama logo se espalhou pela cidade.   

Como o hotel ficava próximo às estações ferroviária e rodoviária, havia um carregador de malas que ficava por lá, o dia inteiro, fazendo a propaganda e conduzindo os viajantes, que acabaram se tornando seus clientes constantes.

Minha mãe ficou famosa pelos seus dotes culinários, e logo a cidade toda ficou sabendo de suas habilidades na cozinha.

O Clube Pontenovense, da alta sociedade, promoveu grandes banquetes, e ela sempre foi chamada para colaborar no preparo da gastronomia.

O Hotel ficava à beira do rio Piranga, que cortava a cidade de Ponte Nova.  

Um grande refeitório tinha a vista para a cidade e o rio passava logo abaixo. 

Do outro lado do cais, avistava-se o Hotel Ponte Nova e, logo em seguida, dava pra ver os hotéis Glória e Simeão.

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ITABIRA
Nossa vida foi sempre marcada por mudanças.

Meu pai sempre foi muito aventureiro, e carregava a família para onde achasse que iria dar certo.

Pouco tempo se passou e meus pais fixaram residência em Itabira.

Papai arrumou emprego, e Jorge, já rapaz feito, também se organizou por lá.
Eu fui visitá-los algumas vezes.

Minha mãe então, me chamou para ir morar com eles, novamente.

 Apesar da minha tentativa de explicar que eu estava bem, me esforçando para vencer aquela etapa da vida, de nada adiantou!

Ela dizia que eu era menor de idade e que deveria ficar em casa dos pais. 

Tentei o argumento de que eu estava estudando, e que precisaria chegar pelo menos até ao final do ano. Depois, então, poderia me transferir para onde eles estavam.

Mas foi tanto falatório, que eu acabei deixando tudo pra trás e voltei a viver com eles em Itabira.

Fiquei muito contrariada e parecia que o mundo tinha acabado pra mim.

Tranquei-me num quarto, desolada, e não tinha vontade de chegar nem na porta de casa.

Mamãe queria me apresentar para os vizinhos, mas eu não aparecia.

Um mês depois decidi sair do confinamento e fui procurar um emprego.  

Apareceu um escritório de contabilidade, onde eles acabaram me contratando.

Seu Barão, o dono do escritório, era um senhor de idade, simpático e muito amável. Nos demos muito bem!

Embora tivesse lá seus quase setenta anos, com muitos filhos e netos, ainda trabalhava com disposição.

Contava meus dezesseis anos, quando minha vida começou a existir naquela cidade desconhecida. No princípio eu não gostava muito, mas como eu já tinha conseguido um emprego foi mais fácil me adaptar.

Eu, sem muitos planos ainda, me dedicava à música e, além de trabalhar no escritório, dava aulas de acordeon pela cidade.

Minha fama logo foi se espalhando, e apareceram tantos alunos que recebí uma oferta de um grande espaço para montar a escola de música, que era um salão da Cia Vale do Rio Doce.  

Os velhos músicos da cidade me procuravam para conversar sobre música e me ouvirem tocar o acordeom, que sempre era acompanhado de um saxofone, um violino ou um bandolim.

Apesar de muito nova ainda, aqueles senhores de sessenta e setenta anos, falavam a mesma linguagem musical que eu, e por isso os assuntos eram intermináveis.

O padre da paróquia próxima lá de casa, queria que eu formasse um coral para a igreja.  Pronto, agora eu já tinha o que fazer da vida.

Mas quis o destino que tudo fosse diferente e, em pouco tempo eu conhecí o Nilo, empresário da cidade, que se encantou por mim.

Quando ele apareceu lá no escritório do Seu Barão pela primeira vez, depois que eu comecei a trabalhar lá, confesso que nem notei muito a sua presença.  

O senhor Barão havia me explicado que fazia a escrita da firma do Nilo, e por esse motivo, ele aparecia lá de vez em quando, para saber de algum detalhe.

Depois de me ver por lá, então, passou a frequentar ainda mais o local e, quando saía, meu chefe comentava sobre o interesse dele por mim.
                     

O Namoro

Foram seis meses, entre namoro, noivado e casamento.

 E aí eu me casei!




No primeiro mes de namoro, junto com as alianças, ele me deu um belo acordeom de presente e me conquistou.

A vida já tinha me reservado tantas mágoas nos últimos tempos, que eu nem sabia mais distinguir qualquer sentimento, que não fosse relacionado à música.

Meus pais foram contra aquele namoro desde o princípio, pois além da diferença de idade entre nós, uma vez que ele tinha vinte anos a mais que eu, Nilo era alcólatra. Eu achava que um dia ele pudesse se curar.

Confesso que eu tinha um gênio difícil, principalmente no relacionamento com minha mãe, pois pensava que ela não gostava de mim e por isso me tratava mal. Enfim, não nos dávamos muito bem nesse tempo e eu só pensava em poder sair de casa algum dia.

Nilo era um representante comercial, de modos não tão finos como imaginei, e eu que era sonhadora e voltada para a música, nada sabia da realidade da vida. Não conseguia imaginar o que estava por vir.

Nilo morava sozinho em seu apartamento, que ficava em cima do depósito de bebidas, onde funcionava o seu comércio. 

Os parentes vinham sempre lhe visitar, a mãe e os irmãos.

Era muito conhecido na cidade, tinha fama de rico e muitos companheiros de boteco, de caçadas, pescaria e cachaça, que era o que ele gostava.
Ouviam-se comentários na cidade, de que ele tinha mulher por conta lá na zona boêmia, mas que o seu comportamento havia mudado, depois que ele me conheceu.

Quando chegava ao portão de casa, e eu saia para conversar com ele, muitas vezes estava embriagado, mas dizia que ia parar de beber.

Levou-me certo dia para conhecer sua mãe, D. Lulu. Ao me apresentar a ela, me olhou de cima em baixo, me deixando desconcertada.

Disse-me, olhando nos olhos: “voce sabe o que está fazendo? Nilo só me deu contrariedade até agora. Gostaria que ele se casasse, seja com voce ou qualquer outra, para ver se conserta, mas voce é muito nova ainda”...

Eu lhe respondí que, com bons modos, talvez ele mudasse.  Ela sorriu!

A minha história quase se repetiu, tal qual a de meus pais.   

Após seis meses de casada, Nilo perdeu quase tudo que tinha, restando apenas umas terras de pequeno sítio e o apartamento onde morávamos.     

Grávida do primeiro filho, fomos morar numa casinha do sítio, local afastado da cidade e alugamos o apartamento, para a nossa sobrevivência.

Restou uma loja, que também alugamos e um pequeno barracão nos fundos, que preservamos caso a gente precisasse ficar na cidade.

No sítio tinha um velho galinheiro, com umas cinquenta galinhas soltas, e um chiqueiro com alguns porcos também, mais ou menos vinte animais.

Foi aí que resolví vender tudo, mas de uma forma diferente, que ainda não se ouvia falar naquela época.

Quando digo que eu resolví, é porque o Nilo não era disposto ao trabalho.

Era acostumado a não fazer nada, só bater papo com os amigos e sair para as noitadas fora de casa. Isso continuou mesmo depois de casado, quando ele deixava uma jovem esposa dedicada e trabalhadeira em casa, grávida do primeiro filhinho, pelo qual ele nunca manifestou qualquer sentimento de afeto.

Diante da situação em que a gente se encontrava, também não tomava iniciativa de nada, deixando tudo por minha conta.

Foi assim que fui aprendendo a administrar a vida, quando completei 18 anos.

Quando fomos morar na casinha do sítio, não tínhamos conforto nenhum. Ainda não havia luz e nem água canalizada, o que fomos colocando aos poucos.

 No meio do mato, era comum ver cobras e aranhas enormes dentro da casa.   Fui me acostumando.



Naquele barracão da cidade, fui mandando trazer as galinhas.

Mandava matar, pois não tinha coragem para fazer isso. Limpava tudo direitinho!

Enquanto isso, Nilo ia ao telefone ligar para os amigos dizendo:  “A Sonia está vendendo a galinha já abatida e limpinha, se voces quiserem...”  e assim começou minha fama com as galinhas abatidas, que tanto facilitaram a vida das donas de casa.

Os porcos viraram linguiça.  Comprei um velho canhão de encher linguiça, no açougue perto de casa, e me tornei fabricante do produto.

O trabalho era árduo, a freguesia aumentava e as galinhas e os porcos já estavam acabando.  

Então eu disse ao Nilo que eu iria comprar frangos para vender, não queria parar por ali.

Passava muitas noites em casa, sozinha, sem saber por onde andava o Nilo, que chegava de madrugada e completamente embriagado.

Aprendí a dirigir e muitas vezes saí procurando por ele, nos bares, até o encontrar. 

Voltávamos para casa, com ele vociferando em cima de mim. 

Certa vez me deu um empurrão diante dos amigos dele e, no tombo me machuquei e quase perdí o bebê.  Ao médico, ele disse que eu tinha caído na escada.
Outras vezes, eu estava em casa dormindo, cansada, depois de um dia de muito trabalho, quando ele aparecia acompanhado de alguma “senhorita” de não sei onde e me apresentava. Dizia que estavam no bar e que ela o acompanhou para me conhecer.

No instante em que ele pedia licença para ir ao banheiro, eu a convidava a sair de minha casa, de fininho. Quando ele voltava e perguntava por ela, eu respondia que ela não quis esperar por ele.

Nossa vida íntima era um desastre, pois o Nilo acostumado a fazer o que quisesse na zona boêmia, com todas as mulheres, não via diferença nenhuma entre nós. Se eu me recusasse, ele dizia que iria procurar quem fizesse melhor, e saía de casa.  Outras vezes, me agarrava à força e não adiantava as lágrimas. Era violentada do jeito que ele entendesse.

Numa noite, Nilo estava numa ressaca do dia anterior e não conseguiu sair de casa.

Foi a primeira noite em que ele se deitou mais cedo, para dormir, desde o nosso casamento.  

Lá pelas tantas da madrugada eu comecei a me sentir muito mal.

Não sabia o que se passava comigo e nem imaginava que estava chegando a hora de ter meu bebê.   

Nilo não me deixava ir ao médico, e toda a gestação daquela criança foi do jeito que a natureza quis, ou seja, eu nunca soube quando começou e nem quando iria acabar.

Naquela madrugada, chamei Nilo para socorrer-me, pois sentia muito líquido escorrendo pelas minhas pernas e muita dor, e eu não sabia explicar o que se tratava.

Muito a contragosto, ele me colocou num velho caminhão que tínhamos e se dirigiu bruscamente até o hospital.

Chegando lá, me levaram correndo para uma sala, onde pouco tempo depois nasceu o meu filhinho.

Meu encantamento diante daquele filho superou tudo o que eu tinha passado até aquele momento.

Nilo já havia chamado meus pais, que vieram logo recepcionar mais um neto.   

O pai, que ainda não tinha visto o bebê, só perguntou no corredor, à enfermeira que saía do quarto: “ O menino é perfeito?”...

Na família dele havia alguns sobrinhos portadores de problemas genéticos, e ele temia ter um filho assim.

De volta pra casa, agradecí muito a Deus pela ressaca do Nilo naquela noite, pois se ele não estivesse em casa eu não sei o que me aconteceria.

Agora, eu cuidava do meu filhinho, da casa e das vendas dos frangos que ia progredindo devagar.

  
   Ana Paula                            Nilinho


Eu nunca disse nada aos meus pais sobre o que acontecia em minha casa.

Sempre deixei que eles pensassem que eu estava bem, e feliz em minha nova vida. 

Também não sei se eles entenderiam e me apoiariam em alguma coisa.

Nilinho tinha apenas um ano de idade, quando eu estava para ter outro filho.
Como sempre, não sabia quando ia nascer, pois não havia consulta médica.

Morávamos ainda naquele sítio, quando D. Lulu, minha sogra, apareceu por lá para uma visita.

Vendo-me naquele estado, se preocupou com a falta de assistência durante o parto, já que a criança poderia nascer a qualquer momento.

 Ela e o filho quase me obrigaram a ir para a cidade onde morava, alegando que me levaria aos médicos de sua confiança e eu estaria bem.
 Seria necessário que eu deixasse o Nilinho com minha mãe, e assim que o bebê nascesse ela me traria de volta pra casa.  Seria por poucos dias.

Fui com ela para Coronel Fabriciano e mamãe ficou com Nilinho, até que eu voltei pra casa.

Permanecí por lá por quase trinta dias, até que o Marquinho nasceu. 

Liguei para o Nilo ir me buscar, mas ele preferiu esperar que alguém me trouxesse. 

Fiquei sabendo através de uma cunhada, de que ele suspeitou da paternidade do filho. Andou espalhando pra família toda.

 Era assim, ele tinha a mania de me defamar com os amigos e eu fazia de conta que não sabia de nada.

Felizmente, meus filhos todos se pareciam com ele. 

Quando alguém me levou de volta pra casa, encontrei com ele logo na entrada.

Ele nem se entusiasmou com aquele filhinho que estava em meus braços!

Aproximei-me, abri um pouco o manto que o envolvia o bebê, destampei aquele rostinho e disse pra ele: “Deus é tão bom, que para provar que esta criança é sangue do seu sangue, não precisava parecer tanto com voce”.


No sítio o progresso chegou rapidamente. Galpões foram construídos, para abrigar a criação de frangos, o gado leiteiro, dois lagos com muito peixe,  e uma pocilga para criação de porcos.

A casa foi ampliada, e eu administrava aquilo tudo.  O abatedouro na cidade era um luxo e todo mundo só comia frango abatido quase que na hora.


  Ana Paula                                                           Papai e meus filhos

As crianças brincavam e Nilinho gostava de pescar na lagoa em frente da casa.  Marquinho estava começando a dar os primeiros passos.

 Nilinho pescando

Mamãe e papai muito me ajudaram, e participaram do nosso progresso. 

Assim que as coisas começaram a melhorar para mim, pensei em dar a eles um pouco de conforto, e fui colocando na casa deles o que eu achava que estava faltando.  Papai foi trabalhar no abatedouro, e quando ia ao sítio, era a alegria dos netos.
Marquinhos, com um ano e tres meses, começou a regredir nos movimentos.

Chorava muito, e eu pensei em levá-lo ao médico, mas o pai não deixou. 

Passado um mes ou mais, ele foi só piorando, e aí resolví enfrentá-lo e procurei um pediatra. 

Meu coração de mãe me dizia que ele tinha qualquer problema sério.

O médico me pediu que o levasse a um especialista em Belo Horizonte e lá ficou constatado que ele estava quase cego, tinha um entupimento numa veia que levava o líquido do cérebro até a coluna.

Desse dia, até sua morte tão prematura, foram seis meses de muito sofrimento no hospital.

Ele foi paralisando aos pouquinhos, até ser alimentado, nos últimos dias, por uma sonda no nariz.

E Deus levou meu anjinho!

Foi um tempo de muito silêncio em minha vida. Eu não conseguia entender  porque tinha acontecido tudo aquilo, porque eu não queria perdoar, porém Nilinho estava alí me acariciando, me fazendo sentir viva.

A vida foi seguindo com muito trabalho, e agora, Nilo recebia os amigos no sítio, ia para a beira da lagoa pescar com eles e só tarde da noite é que voltavam pra casa.   

Quando entravam, já tinham bebido bastante e Nilo me pedia para fazer os peixinhos que eles pescavam.
Muitas vezes, eu me levantava da cama pra limpar os peixes e fritar.

Nunca pude ter uma empregada, pois Nilo não permitia.

Enquanto o pessoal continuava a beber, ele ia contando aos amigos sobre a nossa vida, falando muito mal de mim e da minha família.  

Acostumou a dizer que se casou comigo por pena, porque minha família não valia nada e nem tinha onde cair morta.

Era o assunto preferido dele. Eu ouvia tudo calada, nunca disse uma palavra.  Os amigos também só escutavam.

De vez em quando, alguém pedia para ele parar com aquilo, pois eu era uma mulher trabalhadeira e não merecia ouvir isso, mas ele insistia.


Muitas vezes eu chorei por causa disso, pelo meu Marquinho que me abandonara alí, e pelo meu Nilinho que crescia vendo aquela vida.

Uma noite, eu me recusei a fritar os peixinhos para eles, e então ele foi até o nosso quarto e me disse que alí tinha gerente de banco, gente importante, e que eu precisava ser gentil com eles. Eu entendí.

Um tempo depois, eu percebi que estava grávida de novo, mas dois meses depois perdi a criança. 

Assim aconteceram mais tres vezes e eu estava arrasada por dentro. 

Foi então que Nilo me levou ao médico e pediu que ele me receitasse um remédio pra eu nunca mais ter filhos, pois ele também não queria mais.

Mas, antes que eu começasse a agir contra a natureza, engravidei de novo e desta vez vingou.

Novamente sem ir ao médico, fui engordando aquele bebezinho dentro de mim e, aos poucos, me tornei alegre outra vez, apesar da rotina.

Eu ficava imaginando quando o meu bebê iria nascer, pois não sabia a data certa.

De novo, Dona Lulu apareceu e levou-me para ter a criança lá na sua cidade.

Tudo programado. Fui levada para o hospital, diretamente para a sala de partos.

Quando o médico percebeu que a criança estava atravessada, e não poderia nascer de parto normal, correram comigo para outra sala e foi necessário fazer uma cesariana.

Nasceu Ana Paula, e eu nem cheguei a vê-la direitinho. Já começava um novo sofrimento. 

Dores terríveis, injeções de morfina para aliviar... e o quadro só se agravava! 

Outros médicos foram chamados para dar opinião, mas a notícia não era das melhores. Achavam que eu não escaparia dessa!

 Os amigos do Nilo chegaram a dizer que ele estava perdendo o seu braço direito, a sua grande companheira.

Os médicos falaram que eu teria que fazer uma nova cirurgia, imediatamente, e que talvez eu não resistisse.
Com a autorização da família do Nilo, eu fui para a nova cirurgia, no terceiro dia de vida da Ana Paula.  Foram 12 dias de coma total.

Não sei o que aconteceu, mas alguma coisa ficou esquecida dentro de mim, durante a cesária, e entrou em estado de necrose. Foi preciso outra intervenção para retirá-la.

Eu estava com 25 anos de idade,quando deixei o hospital com minha filhinha nos braços, e um atestado médico relatando o acontecido.

Ouvi o médico dizer que nunca tinha visto tanta vontade de viver, numa pessoa, e que foi isso que me salvou. 

Eu respondi que não deixaria minha filhinha no mundo sem a mãe. 

Ele me disse, naquele momento, que eu nunca mais poderia ter filhos, depois daquela cirurgia.


Fiquei muito abalada, mas pensei em Deus. Só Ele sabia o que estava certo para mim.

Voltei para a casa.  É claro que Nilo não foi me buscar também dessa vez, mas alguém se incumbiu dessa tarefa.

A vida foi ficando quase que insuportável ao lado do Nilo.

Além de continuar aquelas conversas com os amigos, cada dia falando coisas piores a meu respeito, insultando a mim e à minha família, que nem sonhava que isso acontecia, Nilo continuava me forçando a fazer coisas que eu nunca queria, mas era brutalmente forçada.

Muitas vezes, enquanto eu dormia, depois de um dia de muita luta, ele chegava cheirando à bebida, me acordava e jogava água para que eu me despertasse. Em seguida, pegava sua espingarda e colocava na minha testa, dizendo que ia me matar, pois eu não valia nada. 

Outras vezes, ele dormia com um revólver debaixo do travesseiro, e cismava que eu queria matá-lo.

Eu não podia arranjar uma empregada, senão ele andava sem roupas dentro de casa, só para a moça ir embora.





Comecei a pensar em separação, mas para onde ir com dois filhos pequenos? 

Então resolvi conversar com meus pais, para ver se eles me aceitavam de volta, junto com meus filhos, mas mamãe foi taxativa em dizer que eu não seria bem bem-vinda naquela casa.

Lutei por uma separação legal, afinal eu tinha construído quase todo aquele patrimônio que lá estava. Seria justo que dividíssemos os bens, já que eu ficaria com os filhos.

 Na época, tinha uma produção de aves de corte que girava em torno de 60.000 cabeças, mais 6.000 poedeiras em gaiolas, gado puro Holandes e uma pocilga para mil porcos matrizes. Tinha ainda um abatedouro semiautomático, bem avançado para aquela época e uma frota com cinco veículos: Um caminhãozinho 608 D, Mercedez bens, uma kombi, uma caminhonete C 14/ Chevrolet, um automóvel Aufa Romeo novo e um Impala. 

Como sempre o Nilo pegava a espingarda, a encostava na minha testa, e afirmava que a minha parte nos bens eu levaria pra debaixo da terra. 

Deixei passar o tempo, para pensar melhor.

Como eu não poderia ter mais filhos, consegui convencê-lo a passar os bens em nome dos nossos dois filhos. Num tempo de calmaria, ele concordou e assim foi feito.

Já mais tranquila, pensei um dia, meditando longamente, que eu ainda era muito jovem para terminar assim.

Se ficasse ao lado dele talvez não visse meus filhos crescerem, então fizemos um acordo e o desquite foi feito do jeito que ele pensou.

Nilo contratou um advogado, e ficou determinado, que o usufruto dos bens ficaria com ele, enquanto vivesse. Depois passaria para o nome dos filhos.

Concordei com a decisão, e saí daquela casa, levando meus filhos e deixando tudo para trás.

Ficou estabelecido, que ele teria que pagar uma pensão para mim e outra para os filhos, porém, com o passar dos anos, ele foi se esquecendo de cumprir esse acordo.

Inicialmente, aluguei uma casinha perto da residência da minha família, para me sentir protegida, mas logo depois, amigos me arrumaram emprego em Belo Horizonte, e eu fui tentar uma vida nova.

Deixei as crianças com minha mãe, no período de experiência do meu trabalho.
Fui ao banco com meu pai, e solicitei ao gerente, mediante um documento assinado, que fosse transferido para ele todo o dinheiro que o Nilo depositasse, o que seria para cuidar das crianças enquanto eu estivesse fora.

Arranjei um pensionato, pertinho do trabalho, e nos finais de semana corria para perto dos meus meninos.

Só que isso não durou muito tempo, pois logo eu adoecí.

Meu pai aparecia, para pedir mais dinheiro, alegando que a pensão não dava para pagar as despesas.

Comecei a me sentir muito mal, e precisei ser internada várias vezes, numa clínica perto de casa, até que um dia, um dos médicos me disse que meu caso não tinha solução.

Fiquei muito assustada, pensei que eu tivesse alguma doença incurável, que estava para morrer. Já bastante debilitada, pedi demissão do emprego, juntei minhas coisas e voltei para a casa dos meus pais. Infelizmente, minha mãe me aceitou por pouco tempo.

Após treis dias, prostada em cima da cama, com muita febre e sem conseguir me alimentar, não aguentei e pedí a meu pai que fosse chamar um médico que era amigo nosso lá na cidade.

Assim que o médico chegou, expliquei a ele o que estava acontecendo comigo.

 Ele examinou umas radiografias que fizeram lá na clínica, e disse que eu aguardasse até de tarde, pois voltaria com uma solução para o meu caso.

Ao retornar, me perguntou se eu aguentaria chegar até Belo Horizonte, para uma consulta com um médico de sua confiança, que já estava a par do meu caso e me esperava no Hospital Felício Rocho.

Foi com enorme esforço, que coloquei algumas peças de roupa numa pequena sacola, separei alguns documentos, entrei no ônibus e fui ao encontro daquele médico.

Ao chegar ao hospital, estava com uma forte febre me queimando a face, quando alguém me perguntou quem era o meu acompanhante, pois precisava ter alguém ali, para me internar. Eu respondi: “sou sozinha no mundo, não tenho ninguém, sou indigente”, enquanto escorregava pela parede e caía no chão, já sem forças. 

O médico apareceu, e eu acabei sendo internada como indigente.

Depois de fazer alguns exames, foi constatada a osteomielite, localizada nas vértebras.

Foram doze dias internada. Fiquei tão mal, que perdí nove quilos, dos poucos que ainda me restavam.

O que passei naquele hospital não foi tão fácil de suportar. 

Não conseguia descobrir o que me atrapalhava o intestino. O banheiro era no final do corredor, e eu tinha que atravessá-lo, com soro na veia, o dia inteiro.

Era o tempo todo, carregando aquele soro pelo corredor, para lá e para cá, segurando nas paredes para não cair de fraqueza.

No final, engessaram o meu corpo, num top que pegava debaixo dos braços, tipo tomara que caia, até os quadris.

Uma dose cavalar de garamicina iria garantir a quase extinção da doença e assim eu frequentava a farmácia, para tomar injeção, de manhã e à tarde, ora num braço, ora no outro.

O tratamento durou dois meses, quando voltei para retirar o gesso.

Enquanto estava internada no hospital, ninguém da minha família apareceu para me visitar, nem meus pais me procuraram.  

A única pessoa que esteve lá para me ver foi minha madrinha Graciana, filha da vó Norata, lá de Itabirito, que ficou sabendo do meu estado de saúde e quis me fazer uma visita. 

Ela me dizia, que quando eu saísse do hospital iria para a casa da vovó, viver com elas.

E foi assim que voltei para Itabirito e busquei meus filhos para perto de mim, novamente.

Nilo se aproveitou da situação, e entrou com um pedido de posse dos filhos, na justiça. Alegou que o motivo era a minha incapacidade de ficar com eles, tudo combinado com meus pais, que ficariam com as crianças em troca de uma gorda pensão, desde que afirmassem o que ele queria, diante do juiz.  

No entanto, eu fui avisada antes e cheguei a tempo na audiência, ao lado de um advogado que a vovó arranjou. Durante o trajeto, fui contando a ele o meu caso e ele me defendeu. Então fiquei com a guarda dos meus filhos, único bem que me restava.

Algum tempo depois, meu pai apareceu lá na casa da vovó e pediu que não ficassem comigo lá. 

Eu estava no quarto, ouvindo a conversa, atrás da porta, quando ele chegou e todos foram recebê-lo.

 Eu ainda estava muito magoada e por isso, não aparecí de imediato.

Foi aí que ele conversou com as “comadres”, como costumava chamar as tias, na sala de jantar, próximo ao local onde eu estava.

Depois de dizer o que ele queria ouví minha madrinha responder que eu havia sido criada por elas, e que me conheciam mais que eles, que eram meus próprios pais.

Falou também, que aquela casa era o meu verdadeiro lar, onde eu seria acolhida sempre que precisasse, mesmo que isso custasse a antiga amizade existente entre eles. 

Nunca me esquecí disso. Foi aí que percebí a diferença de uma verdadeira família: aquela que me acolheu naquele momento, e a outra, que me negou abrigo, quando eu estava desamparada, com dois filhos pequenos para cuidar.

Não quis abraçar meu pai naquele dia, e permanecí escondida até que ele foi embora.

Resolví ficar por lá, até que as coisas se organizassem na minha cabeça e eu pudesse me tratar direitinho. 

O Nilinho foi estudar em Cachoeira do Campo, num colégio de padres, que funcionava como internato. Lá eu ia visitá-lo toda semana, pois era pertinho e eu podia estar sempre com ele. 

O filho de um amigo da minha avó, também estudava junto com Nilinho e sabendo disso, fiquei mais tranquila, pois ele já tinha um coleguinha na mesma escola.

Ana Paula era muito pequena ainda e já era o xodó das tias da casa.

Cheguei naquela casa muito magra e debilitada, mas em pouco tempo, com todos os mimos das tias e alimentando bem, comecei a engordar dentro do gesso e tive que ponderar nas gulodices, até que pudesse retirar o gesso.
Foi como se voltasse ao tempo de infância, naquela casa.

Já havia se passado quase um ano, desde que fomos morar lá, quando o Nilo apareceu para uma visita. 

As velhas senhoras, como de praxe, receberam-no bem, como qualquer outra visita. 

Veio então, uma proposta para que eu voltasse a viver com ele, o que eu não aceitei naquele primeiro momento. 

Outras visitas e várias promessas foram feitas, na condição de que, se eu voltasse, não precisaria mais trabalhar como antes.

Dizia que estava arrependido, que tinha mudado e que queria reconstruir a família.

Essas visitas foram amolecendo o coração das pessoas, que achavam que eu deveria dar a ele outra oportunidade. Eu dizia que não acreditava naquela mudança, mas diante de tanta insistência, acabei cedendo.

De volta ao antigo lar, fui dominando as emoções e a vida renasceu, como num filme em alta velocidade na minha cabeça.

Eram muitas mágoas para esquecer, muito de mim para anular e aceitar de volta o que minhas entranhas se recusavam a admitir. 

Resolví enfrentar tudo pelo bem dos meus filhos.

Ainda nos primeiros dias da minha volta, presenciei uma reunião do Nilo com alguns senhores, onde ele praticamente entregaria todos os negócios, como num arrendamento, já que ele não se dispunha a trabalhar, como eu fazia quando estava lá.

Percebí o mau negócio que estava pra ser feito, e interví, dizendo a ele que eu estava disposta a administrar tudo, desde que ele não interferisse.

E começou tudo de novo!

Foi um tempo de grande progresso e negócios ampliados. A casa no sítio foi toda reformada, o abatedouro com máquinário de primeira, galpões para a criação de frangos, enfim, muito trabalho e bastante melhoria.

No entanto, Nilo continuou do mesmo jeito que sempre foi e, daí a alguns anos tudo teve fim, como nas outras vezes.

Voltei para BH e fui morar perto da minha irmã mais velha.

Procurei estar perto da família, pois acreditava ficar bem dessa forma, já que minha saúde estava fragilizada e meus filhos poderiam precisar de um amparo rápido.
Minha vida foi se desenvolvendo, numa casinha modesta.

Não me descuidei do tratamento de saúde, porém, num belo dia, acabaram me aposentando por invalidez, já que meu caso não tinha retrocesso. 

Pelo menos, passei a ter uma pensão do governo para alimentar meus filhos.

Mesmo assim, tentava encontrar algum trabalho. Fazia salgados para vender, e minha irmã me arranjou emprego em um supermercado.





                               Cantar, pra quê?

Alguns amigos, daqueles que sempre me ouviam cantar naquele começo de vida, decidiram ajudar, conseguindo pra mim um emprego como cantora.

Foi assim que comecei a mostrar minha voz.

No começo, foi muito difícil dominar a timidez diante de um público, mas aos poucos, devido à boa acolhida que tive, fui me entusiasmando.

Já com uma situação mais sustentável, me mudei com os filhos para um local mais central, a fim de poder trabalhar sem riscos de voltar para casa muito tarde, devido à distância.

Algum tempo depois, minha irmã resolveu trazer nossos pais para viverem em Belo Horizonte, e foi assim que arranjamos uma casinha perto dela para eles morarem.

Aos domingos, a gente ia passear na casa deles, esquecendo as mágoas do passado e felizes com a vida nova.

No começo, mamãe não gostava da profissão que eu escolhi. Dizia que isso era perdição e que eu acabaria mal falada.  

Eu respondia que a gente podia se manter honesta em qualquer lugar, basta querer.

Muito tempo se passou.  Até então, eu me mantia sozinha, cantando pelas noites.

Meus filhos foram crescendo e estudando em bons colégios, até que um dia conhecí alguém que despertou em mim o lado mulher, adormecido e sepultado pelo sofrimento passado.
Ao querer assumir o novo relacionamento, meu filho Nilinho foi categórico em dizer que, se eu arranjasse outro homem na minha vida, ele iria morar com o pai, que a essa altura já havia feito o convite.

Foi dolorosa a decisão, mas ele já estava com 18 anos bem vividos ao meu lado, com todo o carinho e já estava na hora de alçar vôo e tentar outro caminho.

Eu sabia, no fundo, que mais dia ou menos dia, ele iria embora de qualquer jeito, então, deixei que ele partisse e resolví aceitar um novo companheiro ao meu lado.

Aos poucos fui apresentando o novo companheiro para a família, e para minha satisfação, gostaram dele e o aceitaram muito bem.

Nilo já havia tentado nova família por lá e teve mais dois filhos.

A segunda mulher também não suportou por muito tempo as suas bebedeiras e humilhações e logo saiu da companhia dele, indo viver com os pais, numa pequena cidade de interior.

Nessa época, eu estava melhor de situação financeira, pois trabalhava muito e ganhava bem.

Fiquei sabendo daquela pobre mulher, com duas crianças abandonadas e que ainda por cima eram irmãos dos meus filhos e resolvi procurá-la.

Fui até a ela, que a princípio não me recebeu bem, mas diante da minha oferta de ajuda, embora desconfiada, resolveu aceitar. 

Não ví nela uma rival, mesmo porque, já não nutria qualquer sentimento por aquele homem com quem ela também viveu.

Aos poucos ela foi confiando mais em mim e, com isso, não foi difícil entregar-me as crianças para criar, tudo feito com documento assinado e dentro da lei.

Já com o meu novo companheiro, formamos uma nova família. 

As crianças, Gabriela e Marcelo, estavam muito desnutridos, com vários machucados e muitas feridas pelo corpo, além de verminose.

 Aos poucos, fomos tratando das crianças e colocando-as na escola.

A mãe aparecia de vez em quando, para visitá-los e pedir algum dinheiro. Até que, alguns anos depois, ela se casou e decidiu pegar os filhos de volta. 

Sofremos muito com a atitude dela, pois já tínhamos nos apegado a eles, mas nunca os perdemos de vista.

Um dia, papai caiu na rua e foi levado ao hospital. Tinha sofrido um infarto.

Nunca mais ele foi o mesmo e acabou entrando em depressão, apesar do carinho que recebia da mamãe e dos filhos. 

Foi então que resolví ir morar com eles, para estar perto e cuidar. 

A casinha era pequena, então arranjamos uma maior e fomos para lá, com toda a família.

Nossa arte ia a todo vapor!

Meu companheiro  era guitarrista e a dupla fazia sucesso nas noites. Até mamãe acabou ficando fã!

Nossa casa era visitada por muitos artistas, que conviviam com a gente e conheciam meus pais.

Minha mãe era sempre muito agradável, gostava de cozinhar e ficava feliz,  quando comíamos tudo o que ela fazia. 

Sempre que sobrava comida, dividíamos com minha irmã, que morava perto, e também tinha filhos.

Nossa casa passou a ser a casa da Vovó Laura.

A casa era frequentada pelos filhos e netos.  Formávamos uma só família, pois a casa era de todos, embora fosse mantida por mim.


Os netos foram crescendo e fazendo a alegria dos avós.  


Nilinho se tornou pai aos vinte anos, deixando vir ao mundo meu primeiro neto e o primeiro bisneto de Laura e Moreira.  

  Mamãe e papai carregando o primeiro bisneto Matheus.

Também a filha de Maria José, Miriam, casou-se, e nasceu a bisneta Ana Laura.

Papai era aquele avô brincalhão, no qual os netos subiam nas costas e rolavam pelo chão, até que a doença transformou sua vida e a nossa.  

Nunca mais conseguiu se recuperar, caindo em profunda depressão.   Mesmo assim, mamãe o cercava de todos os cuidados e carinhos.


Nas bodas de ouro, Papai conversa com Tio João, Ana Paula e Rogério

   

 


Jordana, Tio João, papai, Ana Paula, mamãe, Cibele, Genaro, Mirinha, Nilinho com Matheus, Juninha, Uma amiga, e amigo.

   O abraço

Nas Bodas de ouro, lá estavam eles, cercados de filhos, netos e bisnetos e de uma infinidade de amigos. Minha filha já casada e com uma filhinha, Laura.


 
                          

Mandamos celebrar uma missa, no quintal da casa, onde os amigos rodearam o altar e eu cantei a Ave Maria para ele. Foi uma emoção geral!

Alguns anos depois, mamãe sentiu-se muito mal e um câncer fulminante lhe interrompeu a vida, nos deixando muita saudade.

Morreu aos 73 anos de idade, deixando uma bela família aqui.  Papai faleceu pouco tempo depois.



Faz muitos anos que mamãe e papai nos deixaram. 

Mudamos daquela casa e começamos uma nova vida: eu e minha família.

A filha Ana Paula, já casada, agora com dois filhos que adoramos e que encantam nossa vida.



Os anos se passaram, porém, continuamos cantando e tocando do mesmo jeito de sempre, com um público cada dia mais fiel e que não se cansa de nos ouvir.

Matheus já formando em direito, e é o nosso orgulho.

Laura, a filha de Ana Paula, já está uma mocinha e o Vinícius é a grande paixão de nossas vidas.


Cantar, porque Deus nos deu o dom de nos comunicarmos com a vida e com as pessoas, através da música.  O palco é um local sagrado para nós, pois é lá que se manifesta todo o sentimento que a alma pode expressar. É uma imensa energia, que flui da alma e envolve aqueles que nos ouvem.

Fomos, e ainda somos muito felizes!

Guardamos na mente todos os detalhes dessa infância maravilhosa, para serem repassados aos nossos filhos e netos, que certamente, um dia vão querer contar para os seus, e se lembrarem de nós.


                       







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